Festa de Formatura, Episódio 2 – Gare de Cornavin
8 minutos
A despedida de Chamonix foi difícil. Sabia ter vivido um momento singular. Continuei esquiando muito tempo depois, mas sempre guardei os dias em Les Pèlerins com um carinho muito especial. Talvez pela intensidade daqueles dias, nem me preocupei com o que estava por vir. Não tinha medo de enfrentar o mundo sozinho: validei meu Eurailpass e segui para Genebra, a primeira parada em meu roteiro.
Era um sábado cinzento de inverno. Passei o dia andando pela cidade e no fim da tarde gelada, descobri que o hostel estava fechado. Resolvi pegar o primeiro trem da manhã para Berna, que saia às 4 e pouco, para evitar chegar por lá tarde da noite. Hotéis suiços eram muito caros para o meu orçamento, e não queria ter uma despesa extra já na primeira noite da viagem. A sala de espera da estação de trem era confortável e resolvi descansar ali mesmo, após um sofisticado jantar no Mc Donald’s.
Comecei a seguir um modus operandi que me acompanhou por muitas viagens na Europa: todos os valores no locker da estação, comigo apenas passaporte, autorização de menor e o dinheirinho do dia. Além, claro, de todos os gorros e agasalhos que pudesse carregar. Às 9 da noite já estava instalado na poltrona e pronto para o merecido descanso. Estava me achando um viajante experiente e super descolado, observando o movimento dos TGVs na estação.
Só não esperava que a acolhedora Gare de Cornavin fechasse às 23 hs, e de repente me vi despejado a -10ºC, num ponto de ônibus do lado externo da estação. Nevava suavemente, os flocos gordos pareciam levitar. Enquanto congelava aos poucos, os funcionários da estação estavam saindo do trabalho. Muitos notavam aquele pirralho se transformando em um boneco de neve, alguns ofereciam ajuda. Um deles ofereceu sua casa para que pudesse passar a noite, mas com receio, educadamente declinei.
Não estava tão ruim: havia um banco para sentar e o ponto era coberto…mas os minutos demoravam a passar, e eu calculava quantos períodos de meia hora ainda teria até a estação reabrir, às 4 da manhã. Será que eu congelaria até lá ? Será que mamãe iria pressentir que o filho mentiroso estava na maior roubada, já na primeira noite ? No meio dos meus pensamentos, outro trabalhador puxou conversa e ofereceu ajuda. Um senhor franzino de boina, na faixa dos 60 anos, suíço, respeitável. Calculei o risco, achei que era mínimo. Certamente menor que ficar horas no ponto de ônibus na madrugada, passando frio.
“Agradeço a sua ajuda, senhor. Mas preciso estar de volta para o primeiro trem da manhã rumo à Berna”.
“Volte na hora que quiser, moro perto da estação”, respondeu o senhor solícito, em uma mistura de francês, inglês e espanhol.
Naquele momento, engoli seco e assumi o risco. Estava com muito frio. O meu novo amigo fez sinal para um táxi na frente da estação, um enorme Mercedes que só poderia ser um táxi suíço. Naquele momento já me deu um frio na barriga. Como um senhor humilde que trabalha na estação – e mora perto – poderia chamar um táxi desses ? Será que ele estava fazendo isso para que eu não passasse mais frio ?
Cada minuto que passava dentro daquele táxi eu ficava mais arrependido e apavorado. Ele não morava perto da estação, como havia dito. Ficamos uns incontáveis 20 minutos no táxi, notei claramente que saímos do centro de Genebra e entramos em um subúrbio com pequenas unidades habitacionais populares. Um bairro bem distante da expectativa que eu tinha a respeito da Suiça.
Perguntei en passant sobre a distância de sua morada, mas preferi não demonstrar minha desconfiança e receio. Naquele momento, já estava ciente do tamanho do problema e procurei prestar atenção nas placas de trânsito. Tarefa difícil, ainda estava nevando, vidros embaçados, tudo escuro. Pensei na possibilidade de me negar a descer do táxi, mas fiquei com medo da reação do taxista e principalmente, de estar cometendo uma enorme injustiça com o senhor que me ofereceu ajuda. Afinal, aquilo tudo poderia ser apenas fruto da minha fértil imaginação.
Descemos do táxi sob neve, o lugar era ermo e escuro. Havia diversos prédios com 5 pavimentos cada, todos iguais e dispostos um ao lado do outro. Mesmo com a neve igualando tudo, o local era sinistro e os prédios antigos. Entramos em um deles e pegamos um elevador muito apertado, daqueles que só cabem duas pessoas e não há porta. Bem na frente dos meus olhos, alternavam-se paredes sujas e portas pichadas, que pareciam descer. Mas eu sabia que estávamos subindo, com aquele barulho irritante de elevador velho…
Entramos no modesto apartamento, uma kitinete com uma pequena cozinha, banheiro, cama e sofá. A simplicidade do local me tranquilizou: estava tudo limpo e organizado. Pensei: o humilde senhor está apenas me ajudando… e eu ainda desconfiando de suas nobres intenções…
Ofereceu-me café, aceitei por educação, mas disse que precisava descansar, pois tinha que voltar para a estação em poucas horas. Seu inglês era quase nulo, mas conseguíamos nos comunicar. Agradeci mais uma vez por sua ajuda, pelo café e fui me acomodando no sofá, explicando que no meu horário sairia sem fazer barulho e tomaria meu rumo, embora não fizesse a menor ideia qual seria.
Antes de conseguir decidir se era mais seguro sair antes ou após o nascer do sol, o senhor anunciou que em sua casa, as visitas deveriam dormir na cama, e não no sofá. Completou que estava acostumado a dormir no sofá, entre os turnos de seu trabalho na estação. Eu polidamente recusei, agradeci, mas ele insistiu. Eu já estava no limite do cansaço e da irritação. Não entendia claramente o que ele falava, mas entendia o rumo da conversa.
A partir desse momento, deixei de querer parecer simpático ou educado. Informei que só queria dormir e partiria em algumas horas. Diante de sua insistência, deitei na cama por cima do cobertor, sem tirar meu casaco. Lembro que, exceto meu gorro, passaporte e a autorização que mantinha no bolso do casaco, meus pertences e valores estavam no locker da estação.
Antes de fechar os olhos, voltei a olhar para a maçaneta da porta de saída, confirmando que a chave estava lá. Já havia prestado atenção nisso quando entramos e ele trancou a porta. Fechei os olhos e fingi estar tranquilo, mas estava com o coração na boca. Ele foi ao banheiro e ao sair, notei as luzes se apagarem. Sabia que chegávamos ao momento decisivo: seria o tiozinho da estação um bom samaritano ou um maníaco pervertido ?
Rezando com todas as minhas forças para que ele deitasse no sofá, em poucos segundos senti que ele estava se deitando ao meu lado na cama. Nesse momento, reuni todas as minhas dúvidas de quando estava no ponto de ônibus, dentro do táxi, dentro do apartamento, e transformei todas elas em apenas uma certeza: aconteça o que acontecer, estou caindo fora agora. Conforme ele se encostou em mim, no escuro, mandei-lhe um coice que fez o senhor solícito parar do outro lado da kitinete.
Coloquei meu gorro, voei no escuro até a porta e ainda deu tempo para ver a luz se acender, o senhor atônito falando algo em francês que eu nem ouvi. Abri a porta e evitei o elevador bizarro. Desci pelas escadas e em menos de um minuto estava na rua escura e branca de neve. Já não estava nevando, eu não estava mais com frio e nem com medo.
Por um bom tempo, não pensei em absolutamente nada que não fosse andar. Era pouco mais de meia-noite e estava tudo deserto. De pouco em pouco olhava para trás, mas não havia ninguém me seguindo. Não havia caminho para escolher, apenas uma rua para seguir em frente. O bairro era escuro e afastado, andei bem até chegar em uma rotatória iluminada que parecia levar a uma avenida.
Não tinha a menor ideia de onde estava, na época não haviam celulares ou navegadores. Mas segui pela avenida e avistei uma placa com os dizeres “Gare de Cornavin”. Andei por quase três horas seguindo as placas da estação e cheguei a tempo de pegar o segundo trem da manhã para Berna, a bela e pacata capital suiça.
Este post é o segundo da série Festa de Formatura, composta por quatro episódios. Conheça a história completa:
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