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Festa de Formatura, Episódio 1 – Mont Blanc

Mont Blanc

8 minutos


Meu sonho de infância era ser maquinista de trem. De vez em quando, meu avô me levava passear de metrô, mas eu queria um trem de verdade, daqueles com buzina ensurdecedora e fumaça de óleo diesel. Nem elétrico, nem maria fumaça. De tanto insistir na estação, ainda bem novinho mas já bastante chato, consegui um belo dia pegar uma carona na cabine do condutor, em um pequeno trecho da linha Santos – Juquiá. Enquanto isso, minha mãe seguia o longo trem de carga dirigindo pela estrada.

trem Santos-Juquiá
Trem da extinta linha Santos – Juquiá da Fepasa, estação de Itanhaém (SP)


Com o tempo, fui aprimorando o sonho. Passei a desejar os trens da Europa, mais tarde o Transiberiano. Quando estava prestes a me formar no ensino fundamental, optei por trocar a minha festa de formatura por uma viagem ao velho continente. Fiquei triste por não participar da festa, mas a vida é feita de escolhas. A sensata proposta materna foi fazer um curso de inglês em Londres, ou algo parecido.

Após apurada análise e pesquisa individual, cheguei à conclusão que deveria mesmo fazer um curso, sem sombra de dúvida. Entretanto, uma clínica de esqui em Chamonix – e posterior viagem de trem com um Eurailpass, em roteiro de minha preferência. Sozinho. Naturalmente, a reação familiar não foi favorável às minhas decisões.

Com muita negociação e persistência, consegui a aprovação da parte de Chamonix, mas deveria procurar uma “excursão para adolescentes coerente com a minha idade”. Sem muita opção ou argumentos, concordei e fui ao STB munido de um passaporte, uma autorização de viagem para menor e alguns dólares. Comprei quatro semanas de hospedagem em um hostel de esqui em Les Pèlerins (Auberge de Jeunesse Chamonix-Mont-Blanc) e um Flexi Eurailpass de 21 dias.

Para a minha santa mãe, que viria a descobrir toda a verdade somente após a viagem, levei um catálogo da Contiki, que oferecia excursões em grupo para jovens, com guia e toda a segurança. Até hoje peço perdão a ela pela lorota, mas eu estava decidido. Lembro-me bem do embarque em um TriStar da British Airways rumo a Heathrow, conexão para Fiumicino em um Boeing 757.

BA Tristar
O clássico TriStar da British Airways


Passei um dia inesquecível em Roma, ciceroneado por um amigo romano da família e após uma maratona gastronômica, embarquei em Termini para Genebra. Trem leito pela primeira vez na vida, evitava dormir para não perder nem um minuto da viagem. Fiquei observando por horas a neve que caia do lado de fora, indicando que a Suiça se aproximava. Nem cheguei a sair da estação de Genebra, a Gare de Cornavin. Peguei alguns trens regionais e ainda pela manhã já estava em Chamonix.

Da saída de Guarulhos à chegada em Chamonix, tive bastante suporte, programação e sabia exatamente o que fazer. Nenhum problema ou imprevisto, e quando dei conta já estava instalado em Les Pèlerins, um conhecido centro de esqui para jovens na França. Meu pacote de esqui incluia um curso. Hervé tinha cerca de 40 anos, falava inglês com forte sotaque e me contou que competia em slalom quando jovem. Segundo ele, foi um ótimo atleta, mas era um péssimo instrutor.

Auberge Chamonix
Auberge de Jeunesse Chamonix-Mont-Blanc


Como era o único menor de 18 anos, tive a sorte de ter instruções particulares com Hervé naquela primeira semana. O progresso foi rápido, e com os dias descobri que ele havia sido um péssimo atleta, mas era um ótimo instrutor. Amava esqui, queijo e vinho. Antes que a primeira semana terminasse, já tinha me levado nas melhores pistas de Les Houches, Le Brévent e La Flégère. Esquiávamos o dia todo, apenas com uma parada para almoço. Hervé não falava muito, mas me apresentava bons queijos, corrigia meus erros nos ski lifts e me fazia esquiar bem atrás dele, imitando cada movimento seu. Parecia que seu objetivo era formar um esquiador mirim tal qual ele havia sido um dia, e eu aceitava a missão.

No primeiro sábado, descobri que não haveria esqui no final de semana. Era o descanso dos instrutores e provavelmente, uma ideia sensata descansar um pouco também. Eu estava fisicamente destruído. Pela manhã, Hervé me contou que não seria mais meu instrutor, pois passaria a treinar uma equipe junior da Dinamarca. Eu tentei disfarçar, mas fiquei visivelmente triste e injuriado. Saí de cara amarrada, pisando duro pela neve fofa da estrada, até chegar ao charmoso centro de Chamonix.

Quando voltei ao hostel, fiquei paralisado com a equipe nórdica que já havia chegado: 12 garotas dinamarquesas, todas entre 16 e 18 anos. Sinto decepcionar o leitor, mas já aviso que nenhuma delas me deu a mínima bola. Eu era apenas um fedelho e elas, belas e jovens atletas da mitologia escandinava. Sérias e focadas, não vi nenhuma delas fumar ou beber durante as duas semanas de estada.

Irritado pelo fato de terem roubado o meu instrutor, só as observava de longe. Até que Hervé me chamou e começou a apresentar uma por uma. Quase morri de infarto, mas passou quando ele anunciou que a partir de segunda, iria treinar junto com elas. O desânimo se transformou em empolgação, mas logo caiu a ficha do meu novo problema: senti um enorme calafrio e medo de passar vergonha, quando pensei melhor sobre os tais treinos com as dinamarquesas.

Adotado como mascote pelas garotas, aprendi muito com elas sobre a arte de esquiar, mas aprendi também sobre responsabilidade e determinação. Uma delas me contou que treinavam e viajavam com tudo pago pelos recursos da federação local, e portanto não podiam falhar com a pátria-mãe. Ganhar não era uma obrigação, mas dar o melhor, sempre – explicou-me Astrid, uma ótima esquiadora de olhos azuis.

Após o mês inesquecível de pistas pretas e queijos brie em Chamonix, guardei o Hervé, as dinamarquesas e o Mont Blanc para sempre em minha memória. Carimbei o Eurailpass e finalmente saí sozinho pelo mundo, aos 14 anos. Com a serenidade típica dos inexperientes e ignorantes.

Mont Blanc


Este post é o primeiro da série Festa de Formatura, composta por quatro episódios. Conheça a história completa:
Próximo post: Festa de Formatura, Episódio 2 – Gare de Cornavin
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Administrador de empresas (FGV), fundador da Atlantic Connection Travel (1996) e da ACT Afrika Tours & Safaris, operadoras de viagem especializadas em África e Ilhas do Índico, com sedes em São Paulo, Cape Town e Odessa.

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