A Democracia e a Liberdade na África do Sul
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Por longos anos, recusei-me a testemunhar a opressão do apartheid ou dos regimes neocolonialistas na África. Sempre fui solidário aos movimentos de libertação, procurando entender a base ideológica de Julius Nyerere, Jomo Kenyatta, Samora Machel, Nelson Mandela. Sempre fui contra qualquer tipo de perseguição política, racial ou ideológica. Sempre repudiei qualquer atentado à democracia e à liberdade.
A vitória da democracia e da liberdade na África do Sul me fez reconsiderar e em 1996 embarquei pela primeira vez em um voo da SAA. Com 24 anos, já era formado, tinha acabado de passar um ano viajando de Cingapura a Roma exclusivamente por terra, de abrir uma empresa e não sabia que este voo iria mudar para sempre a minha vida.
Encontrei uma democracia em formação, um país com cicatrizes profundas e muitos desafios para o futuro. Mas havia uma percepção geral de otimismo, reconciliação e perspectivas promissoras. Um país africano com infraestrutura europeia, potencial de turismo ilimitado, natureza incomparável e uma companhia aérea reconhecidamente entre as melhores do mundo.
Neste contexto, a Atlantic Connection Travel iniciou um relacionamento profissional com a SAA que durou quase 24 anos. A nossa decisão de ser uma operadora especializada em África tinha como base a existência de uma empresa aérea de excelência, com uma rota consolidada para o Brasil e capilaridade no continente africano.
Lembro-me bem do primeiro encontro que tive com Rosana e Nelson, e também do último que tive com Altamiro. Em comum, o fato que sempre apoiaram a nossa empresa e o desenvolvimento do turismo na África. Nestes 24 anos, fiz muitos amigos na SAA e atravessei o Atlântico mais de 75 vezes em cada direção.
Sempre fui atendido com competência, ética, cordialidade e calor sul-africano. Tivemos mais de 5.000 clientes transportados, jamais enfrentamos qualquer problema grave. A SAA de fato teve um papel predominante em trazer o mundo para a África e levar a África para o mundo. Trouxe um novo paradigma de desenvolvimento ao continente, inclusive através do turismo, com uma malha aérea consistente e muito bem operada.
O papel da SAA-Brasil no desenvolvimento das relações bilaterais Brasil-África do Sul foi fundamental e singular. Sem citar nomes, profissionais do passado e do presente fizeram a diferença. Exerceram suas funções com extrema competência e amor pelas bandeiras de um outro país e da empresa que representavam.
Profissionais que estão perdendo o emprego após anos de dedicação à SAA, e que lamentavelmente, estão sendo vítimas da derrota da democracia e da liberdade na África do Sul. Um ciclo nefasto que perdurou durante todo o governo de Jacob Zuma e que vem sendo combatido pelo atual Presidente Cyril Ramaphosa – apesar das resistências que encontra até mesmo dentro do seu próprio partido.
Democracia que perde quando milhões de sul-africanos perdem o acesso à educação de qualidade ou a um sistema de saúde digno e justo. Liberdade que perde quando milhões de sul-africanos não possuem empregos, oportunidades ou inclusão e são atingidos por um sistema de corrupção que saqueou uma empresa respeitada mundialmente, estratégica para o Estado sul-africano e com enorme função social no país.
Não se trata de figura de linguagem. O dinheiro público despejado na SAA, empresa estatal, e incinerado através de corrupção endêmica e ingerência técnica poderia ter sido direcionado corretamente e evitado a decadência de muitos setores da economia e da sociedade sul-africana. Quem conhece o país sabe que a SAA não é a única vítima da corrupção e da incompetência.
Para o mercado brasileiro, em especial para as operadoras que possuem produtos de África um nível acima do elementar, as perdas são irreparáveis. Inevitável que a lacuna seja preenchida a longo prazo, mas a curto prazo as perspectivas são obscuras:
.redução abrupta de 12 frequências semanais GRU/JNB para 5, com possibilidade de aumento para 7 (operadas pela LATAM);
.a LATAM, desde que começou a operar na rota, não estabeleceu acordos e conectividade além dos principais destinos domésticos na África do Sul;
.bilhetes emitidos separadamente e trechos operados por diferentes companhias, em uma mesma rota (São Paulo / Johannesburg / Mauritius, por exemplo) e sem acordo, trazem uma série de desvantagens para o passageiro, particularmente preço, franquia de bagagem e assistência no caso de atrasos em conexões;
.a substituição de rotas domésticas e regionais operadas e extintas pela SAA (Entebbe, por exemplo) por outras empresas não é trivial no contexto da aviação africana; Uganda Airlines, no exemplo dado, não terá condições de suprir a ausência da SAA na rota no mesmo nível;
.a saída da SAA do BSP-Brasil trará uma série de dificuldades para emissão de trechos domésticos e regionais, não apenas da SAA como de suas afiliadas/parceiras Mango, Express, Airlink;
Embora a Ethiopian Airlines esteja em ascensão e deva ser elogiada em muitos pontos, o hub de Addis Abeba tem problemas e é inviável geograficamente para o passageiro brasileiro com destino ao sul da África. Não consigo, mesmo com muito otimismo, vislumbrar que no futuro a TAAG ou a Cabo Verde Airlines serão transportadoras para múltiplos destinos na África: podem atender destinos pontuais, mas tanto Luanda como Ilha do Sal possuem grandes limitações para se candidatar a hubs africanos.
O melhor cenário futuro seria uma empresa aérea estrangeira, profissional e capitalizada, adquirir o controle da SAA, mas esta não parece ser uma hipótese viável a curto prazo. Resumindo, para o passageiro brasileiro com destino à África, a perspectiva imediata é de redução significativa na oferta (tanto na rota Brasil – África do Sul como rotas domésticas e regionais), na qualidade da conexão entre os dois continentes e considerável aumento no valor das tarifas.
Que a democracia e a liberdade possam virar o jogo, e algum dia, reparar o terrível estrago que vem sendo construído há mais de uma década. Os céus da África precisam da SAA, forte, íntegra, multirracial, africana.
Hambani kahle. Tot ziens.