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A Democracia e a Liberdade na África do Sul

South African Airways

8 minutos

Por longos anos, recusei-me a testemunhar a opressão do apartheid ou dos regimes neocolonialistas na África. Sempre fui solidário aos movimentos de libertação, procurando entender a base ideológica de Julius Nyerere, Jomo Kenyatta, Samora Machel, Nelson Mandela. Sempre fui contra qualquer tipo de perseguição política, racial ou ideológica. Sempre repudiei qualquer atentado à democracia e à liberdade.

A vitória da democracia e da liberdade na África do Sul me fez reconsiderar e em 1996 embarquei pela primeira vez em um voo da SAA. Com 24 anos, já era formado, tinha acabado de passar um ano viajando de Cingapura a Roma exclusivamente por terra, de abrir uma empresa e não sabia que este voo iria mudar para sempre a minha vida.

Encontrei uma democracia em formação, um país com cicatrizes profundas e muitos desafios para o futuro. Mas havia uma percepção geral de otimismo, reconciliação e perspectivas promissoras. Um país africano com infraestrutura europeia, potencial de turismo ilimitado, natureza incomparável e uma companhia aérea reconhecidamente entre as melhores do mundo.

Neste contexto, a Atlantic Connection Travel iniciou um relacionamento profissional com a SAA que durou quase 24 anos. A nossa decisão de ser uma operadora especializada em África tinha como base a existência de uma empresa aérea de excelência, com uma rota consolidada para o Brasil e capilaridade no continente africano.

Lembro-me bem do primeiro encontro que tive com Rosana e Nelson, e também do último que tive com Altamiro. Em comum, o fato que sempre apoiaram a nossa empresa e o desenvolvimento do turismo na África. Nestes 24 anos, fiz muitos amigos na SAA e atravessei o Atlântico mais de 75 vezes em cada direção.

Sempre fui atendido com competência, ética, cordialidade e calor sul-africano. Tivemos mais de 5.000 clientes transportados, jamais enfrentamos qualquer problema grave. A SAA de fato teve um papel predominante em trazer o mundo para a África e levar a África para o mundo. Trouxe um novo paradigma de desenvolvimento ao continente, inclusive através do turismo, com uma malha aérea consistente e muito bem operada.

O papel da SAA-Brasil no desenvolvimento das relações bilaterais Brasil-África do Sul foi fundamental e singular. Sem citar nomes, profissionais do passado e do presente fizeram a diferença. Exerceram suas funções com extrema competência e amor pelas bandeiras de um outro país e da empresa que representavam.

Profissionais que estão perdendo o emprego após anos de dedicação à SAA, e que lamentavelmente, estão sendo vítimas da derrota da democracia e da liberdade na África do Sul. Um ciclo nefasto que perdurou durante todo o governo de Jacob Zuma e que vem sendo combatido pelo atual Presidente Cyril Ramaphosa – apesar das resistências que encontra até mesmo dentro do seu próprio partido.

Democracia que perde quando milhões de sul-africanos perdem o acesso à educação de qualidade ou a um sistema de saúde digno e justo. Liberdade que perde quando milhões de sul-africanos não possuem empregos, oportunidades ou inclusão e são atingidos por um sistema de corrupção que saqueou uma empresa respeitada mundialmente, estratégica para o Estado sul-africano e com enorme função social no país.

Não se trata de figura de linguagem. O dinheiro público despejado na SAA, empresa estatal, e incinerado através de corrupção endêmica e ingerência técnica poderia ter sido direcionado corretamente e evitado a decadência de muitos setores da economia e da sociedade sul-africana. Quem conhece o país sabe que a SAA não é a única vítima da corrupção e da incompetência.

Para o mercado brasileiro, em especial para as operadoras que possuem produtos de África um nível acima do elementar, as perdas são irreparáveis. Inevitável que a lacuna seja preenchida a longo prazo, mas a curto prazo as perspectivas são obscuras:
.redução abrupta de 12 frequências semanais GRU/JNB para 5, com possibilidade de aumento para 7 (operadas pela LATAM);
.a LATAM, desde que começou a operar na rota, não estabeleceu acordos e conectividade além dos principais destinos domésticos na África do Sul;
.bilhetes emitidos separadamente e trechos operados por diferentes companhias, em uma mesma rota (São Paulo / Johannesburg / Mauritius, por exemplo) e sem acordo, trazem uma série de desvantagens para o passageiro, particularmente preço, franquia de bagagem e assistência no caso de atrasos em conexões;
.a substituição de rotas domésticas e regionais operadas e extintas pela SAA (Entebbe, por exemplo) por outras empresas não é trivial no contexto da aviação africana; Uganda Airlines, no exemplo dado, não terá condições de suprir a ausência da SAA na rota no mesmo nível;
.a saída da SAA do BSP-Brasil trará uma série de dificuldades para emissão de trechos domésticos e regionais, não apenas da SAA como de suas afiliadas/parceiras Mango, Express, Airlink;

Embora a Ethiopian Airlines esteja em ascensão e deva ser elogiada em muitos pontos, o hub de Addis Abeba tem problemas e é inviável geograficamente para o passageiro brasileiro com destino ao sul da África. Não consigo, mesmo com muito otimismo, vislumbrar que no futuro a TAAG ou a Cabo Verde Airlines serão transportadoras para múltiplos destinos na África: podem atender destinos pontuais, mas tanto Luanda como Ilha do Sal possuem grandes limitações para se candidatar a hubs africanos.

O melhor cenário futuro seria uma empresa aérea estrangeira, profissional e capitalizada, adquirir o controle da SAA, mas esta não parece ser uma hipótese viável a curto prazo. Resumindo, para o passageiro brasileiro com destino à África, a perspectiva imediata é de redução significativa na oferta (tanto na rota Brasil – África do Sul como rotas domésticas e regionais), na qualidade da conexão entre os dois continentes e considerável aumento no valor das tarifas.

Que a democracia e a liberdade possam virar o jogo, e algum dia, reparar o terrível estrago que vem sendo construído há mais de uma década. Os céus da África precisam da SAA, forte, íntegra, multirracial, africana.

Hambani kahle. Tot ziens.

Administrador de empresas (FGV), fundador da Atlantic Connection Travel (1996) e da ACT Afrika Tours & Safaris, operadoras de viagem especializadas em África e Ilhas do Índico, com sedes em São Paulo, Cape Town e Odessa.

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