Agulhas – Alexandria, epílogo 4: O Retorno
8 minutos
Springbok, África do Sul – Véspera da chegada em Cape Town (18/11/2015).
Sempre recordo a recomendação de segurança mais importante em qualquer viagem de automóvel na África: nunca dirigir à noite. Em algumas regiões da África, a direção noturna ainda é um convite a raptos, roubos ou assaltos. Nos países da travessia, tal risco é baixíssimo ou mesmo inexistente. Mas a grande quantidade de animais, selvagens e domésticos, pedestres, veículos não identificados (charretes, tratores, treminhões e afins), caminhões e buracos transformam qualquer velocidade noturna acima de 50 km/h numa verdadeira roleta russa.
Mesmo sabendo do perigo, os diversos compromissos e visitas na etapa de Cape Town a Alexandria me deixaram sem escolha: em alguns momentos, tive que dirigir à noite. Próximo a Bethany, na Namíbia, quase colidi com kudus, springboks, coelhos e corujas na estrada de terra. Na região de Isoka, norte da Zâmbia, os intermináveis caminhões nos dois sentidos da Great North Road em obras espremiam os veículos, jogando-os no acostamento. A estrada Mombasa – Nairobi no Quênia, com trânsito pesado, foi a mais perigosa e desafiadora de todas. As hienas fazendo algazarra na pista, pouco antes de chegar a Shashemene, completam os 4 momentos mais perigosos da jornada de ida.
No retorno, jurei que não dirigiria à noite, em nenhuma situação. Queria chegar a Cape Town o quanto antes, mas em segurança. Para isso, acordaria todos os dias com os primeiros sinais de luz, e ao nascer do sol, já estaria pronto para seguir viagem. Da mesma forma, antes do pôr do sol já deveria estar instalado e pronto para descansar, até a próxima partida no dia seguinte. Essa seria a rotina da volta, e tanto quanto possível, queria acampar em locais isolados e próximos da natureza, utilizando as cidades principais apenas como ponto de reabastecimento, mas não de pernoite.
Os precários remendos no tanque do radiador me deixaram bastante tenso. Parti de Addis bem cedo e sob garoa, no dia 7 de novembro. Durante todo o dia, parei de hora em hora para checar os remendos, que surpreendentemente estavam dando conta do recado. A estação das chuvas na Etiópia já havia terminado, mas de Addis a Moyale dirigi com tempo ruim e muitos alagamentos na estrada, que continuava em construção. Mesmo assim, sem dirigir à noite, tudo ficava mais fácil e previsível, e conseguia avançar sem maiores problemas rumo ao norte do Quênia.
Os policiais no Quênia e na Tanzânia continuaram me parando no retorno: eu continuei a não cometer erros e a não pagar nenhum tostão. Passei direto e sem saudade pela oficina em Dodoma e suspirei aliviado ao cruzar a fronteira para a Zâmbia. Tunduma é o marco do final do leste da África e Nakonde o começo do sul. A fronteira psicológica me fazia sentir cada vez mais perto de casa. Passei uma noite memorável acampando numa fazenda de missionários em Serenje. Após Lusaka, desviei para a região do lago Kariba, fronteira da Zâmbia com o Zimbábue.
Após um sensacional pernoite à beira do lago Kariba, o plano era atravessar ao Zimbábue por Siavonga, exatamente onde fica a barragem. Nesta parte do lago é possível nadar, embora as placas peçam atenção com os hipopótamos.
A barragem Kariba é dividida por Zâmbia e Zimbábue e também marca a fronteira entre os dois países. A construção da barragem no rio Zambezi, concluída em 1959, deu origem ao maior lago artificial do mundo em volume de água. O aquecimento global (causando ora enchentes, ora secas severas) e a manutenção inadequada, ao longo de décadas, não apenas reduziram o potencial de produção de eletricidade, mas também colocaram a barragem em risco de colapso. Caso isso ocorra, o tsunami provado pelo rompimento da barragem chegaria em menos de 8 horas à barragem de Cahora Bassa, em Moçambique, mais à frente no curso do rio Zambezi, colocando-a também em risco. Além do efeito devastador para a vida selvagem e o equilíbrio ecológico no vale do Zambezi, nada menos que 3,5 milhões de vidas humanas e 40% da capacidade hidroelétrica do sul da África estão fortemente ameaçados.
Os últimos anos da ditadura de Robert Mugabe no Zimbábue corroeram a barragem e o país inteiro. Protestos em diversas regiões fecharam as fronteiras, frustrando meu plano de fazer uma rota diferente na parte final.
Voltei para Livingstone e segui pela mesma rota da Namíbia, via Caprivi e Windhoek, apenas evitando os desvios e as estradas de terra. Entre Livingstone e Grootfontein (16/11) cumpri a maior distância em um mesmo dia, 1.010 km.
Na penúltima noite da viagem, última na Namíbia, dormi em Mariental e saí como sempre ao nascer do sol. Cerca de 50 km adiante, “The Hero” simplesmente apagou no meio da estrada, em pleno deserto do Kalahari.
Tentei tirar algum coelho da cartola para consertar a aparente pane elétrica, mas nada aconteceu. Poucos veículos passavam pela estrada, mas um dos primeiros parou voluntariamente para oferecer ajuda. O simpático desconhecido estava indo para Mariental e sugeriu enviar de lá um mecânico com guincho. Aceitei sem pestanejar, mas confesso que fiquei um pouco desconfiado com a ajuda tão prestativa e desinteressada. Sem muitas opções, sentei e aguardei.
Kobus chegou com sua meias altas e trajes de safári, meia hora depois. Afrikaans das botas ao chapéu, apresentou-se com poucas palavras e começou a procurar o problema. Não encontrou motivo aparente para a pane elétrica e rapidamente colocou a Freelander na plataforma, para examinar melhor em sua oficina. Voltamos os 50 km para Mariental conversando sobre a travessia até Alexandria, o retorno e a minha ansiedade para chegar em Cape Town. Sua oficina era a parte dos fundos do amplo jardim de sua bela casa. Antes de retirar o veículo da plataforma, Kobus me levou até a sua sala e me apresentou à sua mulher e casal de filhos. Sua esposa ofereceu-me café e bolo.
O problema na parte elétrica foi encontrado em menos de 5 minutos. Em pouco mais de meia hora, ele consertou o conector e trocou alguns fios desencapados. Sorrindo, anunciou que eu deveria continuar a jornada, se quisesse chegar à fronteira com a África do Sul antes do anoitecer. Se preferisse descansar em Mariental, era convidado a ficar em sua casa para um braai. Sensibilizado com o tratamento, agradeci e pedi a conta para seguir em frente, quando Kobus me informa que não lhe devia nada: ele que se sentia honrado em ter feito parte da minha travessia pela África.
Após muita negociação e insistência, consegui que aceitasse um valor para cobrir os seus custos. Só o convenci apelando para a minha urgência em partir, e que não o faria sem que ele aceitasse o justo recebimento. Um encontro inesquecível, com forte simbolismo. Nunca é apropriado generalizar, mas Kobus ilustra de forma irrepreensível o caráter e espírito do povo afrikaans. Guardo sempre o episódio, para continuar acreditando na humanidade.
Ao pôr do sol, estava solenemente posicionado na cadeira ao lado da minha barraca, no caravan park de Springbok. Finalmente, desde a saída de Addis Abeba, poderia saborear a minha primeira cerveja. Muitas reflexões vieram à minha mente neste entardecer, o último da viagem antes de Cape Town. Lembrei-me de todos os anos em que aguardei pela realização do projeto, a lenta transformação do sonho em realidade, o planejamento, a execução. Estava cansado e feliz em estar chegando ao fim. A Água de Alexandria voltava comigo e ficaria para sempre ao meu lado.
As inacreditáveis cores do fim de tarde em Springbok me trouxeram a emoção única de concluir o projeto, e também a sensação de estar chegando em casa. De forma quase hipnotizante, mesmo depois de tantos anos e tantas viagens por toda a África, eu ainda me assombrava com a mágica sobrenatural que só as cores e as luzes da África do Sul possuem.
Cape Town, África do Sul – Dia da chegada (19/11/2015).
No último dia da travessia, percorri a bela e selvagem costa oeste da África do Sul, já sem pressa, saboreando o reencontro com o gélido Atlântico. Cheguei em Cape Town no começo de uma fria noite de novembro.
Como no dia da partida, passei na frente do Canal Walk, um dos shopping centers de Cape Town, e de repente…voltamos a ser novamente apenas mais um automóvel, entre tantos outros, na movimentada N1.
Naquele momento, fiquei completamente paralizado por não ter mais que acordar ao nascer do sol, dia após dia, para dirigir sem parar e resolver os mais diversos problemas em solo africano. Muitas vezes, ao longo de toda a travessia, tanto na ida como na volta, perguntei-me por que realmente estava fazendo isso. Diversas foram as minhas respostas, todas com alguma verdade, mas nenhuma com a verdade absoluta. Faltava algo para me convencer por completo.
Percebendo agora a minha pane elétrica, “The Hero” assumiu a direção, me conduzindo em transe até Sea Point, em total segurança. Também me explicou, de forma nítida e inequívoca, no idioma das Land Rovers, a razão mágica de ter insistido na travessia de ponta a ponta do continente: conectar todas as minhas viagens na África, passadas e futuras, em uma só. Assim, não haveria mais razão alguma para tristeza, alívio ou comemoração. Finalmente, apenas uma sensação de profunda gratidão e missão cumprida: a travessia da África não estava chegando ao fim.
Ao estacionar “The Hero” na garagem de casa, concluimos o projeto Agulhas – Alexandria com 22.032 km.
Foram percorridos 9.866 km de Cape Town a Addis Abeba com a Freelander, mais 3.889 km em transporte público de Addis Abeba a Alexandria, em 44 dias de viagem na etapa de ida.
A etapa de retorno, sem contar os 12 dias em Addis Abeba, Gondar e Lalibela, durou 13 dias na estrada de sol a sol, respeitando finalmente a regra sagrada de não dirigir à noite. Foram mais 8.277 km de Addis a Cape Town.
A Água de Alexandria estava finalmente em Cape Town.
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Divido esta conquista com todos que acreditaram no projeto e fizeram parte desta incrível jornada.
Gostaria de agradecer às pessoas que foram fundamentais na realização do projeto Agulhas – Alexandria.
O projeto jamais sairia do papel se não tivesse na equipe as nossas gerentes gerais em São Paulo, Juliana Dias, e em Cape Town, Elena Kryvosheieva, que também é minha esposa. Além de cuidar de todas as rotinas da empresa durante a minha ausência, elas foram o meu ponto de apoio e suporte operacional durante a travessia.
À minha querida mãe, Lilian Lucchesi, por me dar completo suporte em assuntos particulares durante minha ausência no Brasil e pela paciência de ter um filho que lhe dá boas razões para ficar preocupada.
No Brasil, agradecemos a South African Airways, nossa parceira para todo o projeto, em especial Altamiro Medici e Franklin Gomes. Embora tenha se desligado da SAA, agradeço ao ex-diretor Nelson de Oliveira pelo decisivo apoio no início do projeto e aproveito para homenageá-lo pelos 25 anos brilhantes à frente da empresa. Seu trabalho e seu legado não serão esquecidos.
À Ethiopian Airlines, nosso agradecimento pelo apoio na etapa de retorno e durante a estadia na Etiópia, em especial aos diretores Girum Abebe e Seble Wongel Azene. Foi uma oportunidade de atestarmos os ótimos serviços da empresa na rota da Etiópia ao Brasil, à África do Sul e também os voos domésticos.
Em Cape Town, agradeço o apoio dos meus amigos de longa data: Gavin Eyre (International House Cape Town), pela divulgação do projeto; Derek Rosmarin, que me apresentou “The Hero”, a Freelander que me levou e trouxe de volta em segurança; e Mark Jowell, que me forneceu equipamentos de segurança e sobrevivência.
Em Stellenbosch, Johann Groenewald (Tracks4Africa) apoiou o projeto com os fantásticos mapas Tracks4Africa para GPS e equipamento de tracking na Freelander. Além de aumentar a segurança e qualidade na navegação, o equipamento permitiu visualizar nossa posição em tempo real, via internet, ao longo de toda a viagem. A empresa é pioneira em tecnologia aplicada a viagens e Johann também contribuiu muito com sua experiência e informações valiosas, nos recebendo sempre com muita cordialidade.
No decorrer da viagem, agradecemos aos seguintes parceiros que já trabalham conosco e que muito gentilmente acreditaram em nosso projeto.
.Tim Farrell, que através de seu network de marketing e conhecimento de África, nos colocou em contato com pessoas chave ao longo do roteiro;
.Caroline Palazzo, Wilderness Safaris (Kulala Desert Lodge e Damaraland Camp);
.Rosemary Mugambi e Karin Siberhagen, Serena Hotels (Arusha Serena Hotel)
.Peter Jones, que nos recebeu de forma impecável no fantástico The River Club, dedicando atenção especial durante nossa estada, contando fatos históricos e curiosos sobre a região e sua propriedade e nos apresentando a John Coppinger (Remote Africa Safaris).
.John Coppinger e equipe, da Remote Africa, nos proporcionou uma das maiores experiências de toda a viagem no incrível Tafika Lodge em South Luangwa. Além de nos receber calorosamente, forneceu todas as informações para que pudéssemos chegar à Great North Road via Luambe e North Luangwa.
.Sourav Ghosal (Taj Pamodzi Hotel) nos concedeu um final de semana magnífico no Taj em Lusaka, proporcionando um repouso muito necessário naquele momento, em um dos melhores hotéis da Zâmbia.
Na esfera governamental, tivemos uma experiência muito positiva com as entidades de turismo da Namíbia. Um agradecimento especial a Cristina Cicognani (Namibia Tourism) e Madeleine Cronje (Namibia Wildlife Resorts) que nos apoiaram com passe livre nos parques nacionais, hospedagem e deram suporte profissional para que pudéssemos mostrar o melhor da Namíbia em nosso projeto.
À Embaixada do Brasil em Adis Abeba, em especial à Embaixadora Isabel Cristina Heyvaert, que nos autorizou a estacionar a Freelander por mais de 4 meses dentro da embaixada e nos recebeu com enorme simpatia e eficiência, nossa gratidão eterna.
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Este é o último post do projeto Agulhas – Alexandria, a travessia completa da África do Sul ao Egito, planejada e executada pela Atlantic Connection Travel.
Esperamos que tenha gostado. Caso tenha qualquer comentário a respeito do projeto, ficaremos honrados em receber o seu e-mail: adriano@actafrika.net
Conheça a história completa:
Post inicial: Cape to Cairo: a gênese da rota épica africana
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