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Agulhas – Alexandria: planejamento e preparação

Sudan visa

8 minutos

A simples decisão de cumprir a travessia e estabelecer uma data de partida muda completamente a percepção sobre a viagem. O sonho se transforma em uma missão, a expectativa se transforma em stress e os anos de estudo parecem desaparecer. A sensação é a de ter encontrado um purgatório de ignorância, entre o sonho e a realidade. Objetivamente, o que tinha pela frente era uma sucessão inacreditável de problemas.

Problemas de naturezas e intensidades diversas são parte indissociável das nossas vidas. A nossa reação aos problemas determina o quanto somos eficientes em solucioná-los. A travessia me apresentou uma nova dimensão na solução de problemas. A quantidade deles era enorme, não lineares e interdependentes. Não sabia nem por onde começar, mas também não tinha mais que 2 meses para a partida: era prudente não perder tempo. Por isso, organizei todas as decisões em setores.

O Trajeto

Embora seja tecnicamente possível percorrer a África pelo lado oeste (Atlântico), a partir de Angola a quantidade de fronteiras, a precariedade das estradas e a instabilidade de muitos países praticamente inviabiliza o trajeto. Claro, com tempo, dinheiro e persistência tudo é possível. Mas Cape to Cairo, por definição, segue o caminho das colônias britânicas, conforme idealizado por Cecil Rhodes. Isso significa seguir pelo leste africano da Tanzânia em diante, mas até chegar lá, há muitas rotas possíveis.

Partindo de Cape Town, pode-se optar entre diversos trajetos, todos sensacionais.

Seguir pela N7 (Cape Namibia Route), atravessar a Namíbia até o Etosha e tomar a direção leste atravessando a faixa do Caprivi até a fronteira da Zâmbia, já próximo a Livingstone / Victoria Falls:

Cape-Town-Livingstone


Seguir pela N1 até Beaufort West, depois Kimberley, Gaborone, Franscistown e Kasane, ou via Johannesburg, chegando em Livingstone / Victoria Falls por Botswana. Também é possível chegar pelo Zimbábue, via Beitbridge (esta fronteira é sempre cheia), Bulawayo e Hwange.


Seguir pela N2 até Moçambique, percorrendo todo o incrível litoral sul-africano, podendo ainda atravessar na rota os reinos do Lesotho ou Eswatini (Swaziland):


Sem sair das estradas principais, África do Sul, Namíbia e Botswana não apresentam quaisquer problemas. Zimbabwe demanda mais paciência e cuidados com um país que sofreu muito nos últimos anos de Robert Mugabe.

Quase todos os trajetos convergem para Livingstone / Victoria Falls. De Lusaka a Great North Road atravessa a Zâmbia até a fronteira com a Tanzânia. A Great East Road desvia para Chipata, porta de entrada do South Luangwa National Park:


A partir da entrada na Tanzânia, salvo possíveis desvios regionais, a jornada segue o eixo principal de Mbeya a Arusha e prossegue ao Quênia:


Um roteiro alternativo de alta complexidade segue todo litoral do Índico até Mombasa, já no Quênia. É um trajeto longo, difícil e com estradas precárias no norte de Moçambique e sul da Tanzânia. A mítica travessia Moçambique-Tanzânia através do Rio Rovuma via ferry (Namoto-Kilambo) ou via Unity Bridge (Negomano-Mtambaswala), infelizmente, não é segura no momento, devido à presença de grupos terroristas na região.


A alternativa é seguir até Inchope (próximo a Beira) e desviar para Chimoio, Mutare, Harare e Lusaka. Nesta ilustração, a Great North Road seguindo direto para a Tanzânia, sem o desvio para Chipata e South Luangwa:


Ou ainda para Blantyre, Lilongwe e Mzuzu. Esta opção permite atingir a Tanzânia atravessando o Malawi, sem entrar no Zimbábue ou na Zâmbia. Também é possível seguir direto para Chipata (Zâmbia) sem entrar no Malawi, via Tete.


Um desvio longo e notável é tomar o rumo oeste a partir da Tanzânia, passando por Ruanda e Uganda. Como ainda não se pode atravessar o Sudão do Sul, devido aos eternos conflitos armados, o desvio acaba desembocando no Quênia:


A partir de Nairobi, o caminho afunila para o inóspito norte do Quênia e o sul da Etiópia, até chegar a Addis Abeba. O meio do caminho, que coincide com a fronteira e o final da lendária estrada conhecida como “Road to Hell” é Moyale, que conta com uma versão do lado queniano e outra do lado etíope:


Marcando o final da África subsaariana, a partir da Etiópia existe o inconveniente de mudar o lado da direção para a direita – raciocínio válido para quem vem do sul ou do leste da África, onde se dirige pela esquerda (mão inglesa).

De Addis rumo a Gondar e da fronteira com o Sudão (Metema / Gallabat) para Gedaref e Khartoum:


A aridez do deserto do Sahara conduz até Wadi Halfa, fronteira com o Egito às margens do Lake Nassar e das ruínas de Abu-Simbel. Já no Egito, o Nilo marca o caminho para Aswan, Luxor, Cairo, e finalmente Alexandria:


Todas as opções de trajeto são fascinantes. O que realmente pesou na minha decisão final foi a coordenação dos seguintes fatores: limitação de tempo, veículo, situação das estradas, burocracia dos vistos e convites de parceiros.

Saindo de Cape Town, seguiria pela N7 até a Namíbia. Passaria pelo Fish River Canyon, Sossusvlei, Swakopmund e Walvis Bay antes de atingir o Etosha e desviar pelo Caprivi até Katima Mulilo. A entrada na Zâmbia por Sesheke até Livingstone e Lusaka. Desvio pela Great East Road até Chipata, passagem pelos parques nacionais de South e North Luangwa. De volta a Great North Road para Nakonde-Tunduma, fronteira com a Tanzânia. Daí em diante o caminho mais direto possível, conforme já mencionado anteriormente: Mbeya-Arusha-Nairobi-Moyale-Addis Abeba-Gondar-Khartoum-Wadi Halfa-Cairo-Alexandria.

O Tempo

Já conhecia bem todos os países da região em viagens anteriores, por isso minha escolha natural, sem limitação de tempo e com as restrições de segurança vigentes em 2015, seria o caminho do Índico via Moçambique até Inchope, depois Malawi, Tanzânia margeando o Lago Tanganika, Ruanda e Uganda antes de voltar ao Quênia e seguir para o norte. Infelizmente não dispunha do tempo necessário para esta lenta e fascinante rota. O convite de parceiros na Namíbia e Zâmbia, aliado às boas estradas, acabou me levando a optar por este trajeto na parte inicial.

Sobre a limitação de tempo, devo ressaltar que como em qualquer viagem desde a fundação da ACT, nunca deixo de cumprir as atividades essenciais e cotidianas das minhas duas empresas, mesmo estando nos locais mais remotos do planeta. Por isso, conexão à internet é sempre um ponto a ser equacionado com carinho. Em condições normais, visitando os principais parques e atrações do percurso, o mínimo de tempo recomendado para se fazer a travessia completa é cerca de 6 meses. Não tinha todo esse tempo e já conhecia a maioria das atrações do trajeto, por isso meu objetivo principal seria completar a travessia, estimando para isso um período de 45 a 60 dias.

A escolha da partida no começo de maio foi minuciosamente estudada, para que o período da travessia fosse maio e junho. Nesta época, foge-se gradativamente do inverno que vem chegando no sul da África e evita-se o período chuvoso em praticamente toda a travessia (exceto em partes da Etiópia). Mas é impossível reunir condições ideais em todas as regiões, e teria de enfrentar temperaturas altíssimas do Sudão em diante.

As altas temperaturas do Sahara, a burocracia para entrada de veículo estrangeiro no Sudão e Egito e a possível demora de uma semana para atravessar com o veículo o Lake Nassar foram identificados como pontos que poderiam atrasar ou comprometer meu objetivo principal, a chegada. Embora a qualidade das estradas no Sudão e Egito esteja acima da média africana, também estão entre as mais perigosas e onde os veículos estrangeiros são mais visados por autoridades policiais corruptas.

Levando todos estes pontos em consideração, e também o fato de que teria que trazer o veículo de volta para a África do Sul, adotei a estratégia de ir com a Freelander até Gondar, na Etiópia, quase na fronteira com o Sudão. Deixaria meu carro no Goha Hotel, um dos nossos parceiros no projeto, e de lá seguiria em transporte público até Alexandria.

O Veículo

Tenho duas Land Rover Defender, uma 110 em Cape Town e uma 90 em São Paulo. Desnecessário mencionar que sou apaixonado por elas, mas conheço bem suas virtudes e vulnerabilidades. Se o objetivo maior no trajeto fosse sair das estradas principais asfaltadas e trafegar em parques ou estradas de terra precárias, onde um 4×4 robusto é primordial, certamente a escolha seria a 110. Mas ela também é pesada e consome bastante diesel.

Para a minha programação de travessia, o ideal seria um veículo 4×4 mais leve, resistente e confiável. Na África, devido à facilidade de manutenção e peças de reposição, esse veículo chama-se Toyota Land Cruiser 76.

Ocorre que também possuo em Cape Town uma Land Rover Freelander 1, ano 2003, antes da partida com 168.000 km. É o meu segundo veículo em Cape Town, utilizado basicamente para ir à praia, centro e supermercado, locais onde o tamanho da Defender 110 é problemático.

A Freelander antiga é um veículo espaçoso mas não enorme, versátil, confortável e com ótima performance de consumo. Não é o 4×4 clássico, mas nas estradas principais, daria conta do recado sem problema. Em estradas de terra e off-road, teria que tomar um cuidado adicional. O maior risco seria a falta de peças de reposição, no caso de algum problema mecânico sério ou desgaste natural, uma vez que ela já tinha 12 anos de uso e kilometragem avançada.

Comprei o risco e me preparei para ele, fazendo uma rigorosa revisão de todas as peças, motor, sistema elétrico e eixos. Durante o período em que a Freelander estaria sendo preparada para a missão, realizaria os prólogos com a Defender 110, testando alguns equipamentos de navegação e camping.

A Burocracia

Sem sombra de dúvida, esta foi a parte mais complexa e estressante do planejamento. Somente a África do Sul (minha base durante a preparação) e a Namíbia não exigiam vistos. Os demais, além de exigi-los, tinham regras específicas e obscuras para “estrangeiros” que atravessassem fronteiras terrestres “sensíveis” com veículos de outros países. Mesmo com a minha experiência no assunto, todo cuidado e atenção não era suficiente, pois um vacilo nesse ponto poderia arruinar a travessia.

Mesmo portando dois passaportes com ótimo trânsito na África (Brasil e Itália), e com Zâmbia, Tanzânia e Quênia permitindo a obtenção do visto na entrada, as regras não eram claras. Algumas fronteiras terrestres do trajeto, pouco utilizadas por turistas e com grande tráfego da população local, restringiam a emissão do visto na chegada em determinados períodos. Obtive um documento de cada um destes países, confirmando que poderia obter o visto nas fronteiras específicas que iria utilizar.

Mas o pesadelo sem fim foram os vistos da Etiópia e do Sudão. A Embaixada da Etiópia negou-se a emitir o visto em Pretoria, somente em Brasília ou Roma. Esta exigência de emitir o visto no país de origem do passaporte me obrigou a programar uma breve volta ao Brasil, por uma semana no final de abril, pouco antes da partida programada para a metade de maio.

Por conta desse retorno forçado, programei também os vistos do Sudão e do Egito por Brasília. O egípcio não apresentou dificuldades. O sudanês foi aplicado e pago no dia 09/04/2015, na Embaixada de Brasília, quando eu ainda estava em Cape Town. Segundo as regras, ficaria pronto em duas semanas, mais que suficiente para retirar o visto ao chegar no Brasil, por volta de 30/04. Mas eu tinha pleno conhecimento que conseguir um visto para o Sudão era uma experiência de suspense, com chances aleatórias de sucesso. Esse ponto fugia completamente do meu controle, e poderia isoladamente comprometer o sucesso da travessia.

Contrariado, voltei a São Paulo após meio ano em Cape Town. A volta foi facilitada pelo apoio da South African Airways, nossa parceira master no projeto. O cônsul da Etiópia solicitou uma reunião presencial para conhecer os detalhes do projeto, também apoiado pela Ethiopian Airlines. Nesta reunião, detalhei o projeto e a intenção de estacionar o veículo por alguns meses no Goha Hotel em Gondar, no intervalo entre a travessia principal e o retorno do veículo para Cape Town. Neste período, estaria na Europa e no Brasil, mas retornaria à Etiópia em outubro. Solicitei uma autorização por escrito ao cônsul. O visto saiu sem surpresas, mas mesmo diante da minha insistência a respeito da permanência temporária do veículo, não tive nenhum retorno ou informação objetiva.

Voltando ao Sudão, não só o visto não ficou pronto no prazo (fim de abril) como fui informado que, pela natureza da minha viagem, o visto teria que passar pela aprovação de autoridades em Khartoum. E que eu poderia, tão logo o visto fosse autorizado, retirá-lo em qualquer embaixada sudanesa nos países do trajeto. Voltei para Cape Town muito chateado com esse revés, prevendo que teria esta indefinição por grande parte do trajeto. Psicologicamente foi péssimo, teria que partir com a incerteza e sabendo que um ponto isolado poderia fracassar a travessia. Mas não tinha escolha e resolvi encarar o risco.

Resumindo a longa novela, só consegui retirar o visto na última capital possível, Addis Abeba, em 17/06, aniversário da minha mãe. Além de percorrer todo o trajeto até Addis sem saber se teria o visto, a notícia da aprovação só chegou no último momento, quando já estava tentando aceitar a interrupção da travessia na Etiópia. A retirada do visto na Embaixada do Sudão em Addis foi um dos momentos mais marcantes de toda a jornada.

Mas a burocracia não se restringe aos vistos. O carnet de passage é similar ao passaporte do veículo. Na verdade, trata-se de uma garantia que o veículo não será vendido em nenhum país diferente do de origem do registro – no caso, a África do Sul. Para obter o carnet é necessário depositar o valor do veículo no AA (Automobile Association of South Africa) ou fazer uma conta vinculada com o mesmo valor. A conta fica bloqueada até que o carnet seja devolvido ao AA, atestando o retorno do veículo ao país de origem. Muitos países não exigem o carnet, mas as regras são confusas e a opinião de consenso é que o carnet facilita bastante as travessias de fronteiras, evitando taxas e problemas adicionais.

Por fim, óbvio mas não menos importante, a documentação do veículo deve estar em perfeitas condições, bem como a carteira de motorista, sempre juntos a versão do país de origem e a internacional, que no caso brasileiro chama-se PID (Permissão Internacional para Dirigir). Curiosamente, fui parado incontáveis vezes nos trajetos de ida e volta, pelos mais diversos motivos e checagens, mas em nenhuma vez sequer solicitaram a PID. A velha e boa CNH brasileira sempre deu conta do recado.

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Este post faz parte do projeto Agulhas – Alexandria, a travessia completa da África do Sul ao Egito, planejada e executada pela Atlantic Connection Travel. Conheça a história completa:
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Apoio:


Administrador de empresas (FGV), fundador da Atlantic Connection Travel (1996) e da ACT Afrika Tours & Safaris, operadoras de viagem especializadas em África e Ilhas do Índico, com sedes em São Paulo, Cape Town e Odessa.

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